O nascimento da minha filha não foi traumático. Não me marcou de nenhuma forma negativa. Não me incapacitou de nada. Não me fez sentir só ou desamparada. Não me retirou poder. Não me roubou qualquer espécie de confiança.
No meu parto, eu servi apenas a Eva. E as restantes pessoas presentes serviram-me apenas a mim. Isso, tenho pena, parece ser um privilégio.
Acho que ser mãe, desde que me lembro, é daquelas coisas que nunca duvidei que quis ser. E quando finalmente engravidei, eu estava pronta. Sabia exactamente o que queria e fiz tudo o que esteve ao meu alcance para conseguir ter um parto com o mínimo de instrumentalização possível.
Com cerca de 8 meses disseram-me que com a minha Talassemia - anemia congénita - teria de ter o bebé no hospital. Na época vivia em Inglaterra e a minha ideia era ter o bebé num birth center. Telefonei para a minha médica em Lisboa e ela deu-me segurança dizendo que o meu corpo estava e está habituado a viver com anemia e que faria o meu parto em Lisboa caso fosse essa a minha escolha.
Não pensei mais sobre o assunto. Metemo-nos num carro e viajámos durante uma semana. Cruzámo-nos com várias pessoas que achavam que eu teria o bebé a qualquer instante dado o tamanho da minha imensa barriga. Mas chegámos bem. E naquele momento parecia mesmo que a Eva estava também a apoiar a minha decisão.
Mentalizei-me que acontecesse o que acontecesse eu estaria disponível para receber a Eva sem anestesias, nem cortes, nem oxicitocina na veia. Vi documentários, li sobre o assunto, combati o medo da dor como pude. Sabia que ter confiança era só a ponta do icebergue e como tal sinto que fiz só uma pequena parte. O resto, deixei ir - entreguei ao mistério da vida.
As pessoas à minha volta diziam-me que não seria capaz e eu chegava a casa e fazia desenhos e afirmava para mim mesma que não havia nenhuma razão para não ser. Acreditei em mim e sobretudo acreditei que esta era a melhor maneira de ter a Eva. Eu ia dar-lhe isso. Ia dar-me isso. E ia ter fé no meu corpo.
Mesmo que quando o momento chegasse desse tudo para o torto, até lá eu escolhia acreditar.
A Eva foi um bebé grande e eu sou uma pessoa pequena. Tive no total 19 horas de trabalho de parto. Houve momentos em que achei que ia morrer e que não seria capaz. Duvidei de tudo o que previamente tinha acreditado. A dor era insuportável e parecia que estava a ser serrada em 2 (não estou a exagerar). É verdade que podia ter corrido tudo mal porque essa alternativa está sempre disponível. Mas o corpo permitiu. A Eva quis assim. E ao meu lado tive um homem que deu tudo dele - na mesma proporção que eu - para garantir que eu me sentia segura e absolutamente suportada nesse momento.
As pessoas que me acompanharam falaram baixinho. A luz era suave. E se houve algum momento de dúvida ou insegurança por parte de quem estava presente, ninguém o partilhou comigo. Tive as condições certas para poder estar o mais relaxada possível numa situação que à partida é bastante íntima, intensa, profundamente instintiva e até selvagem.
A água ajudou. O pano pendurado no tecto ajudou. Não tocarem em mim sem o meu consentimento ajudou. Ter o Bruno presente ajudou. Poder beber água e comer ajudou. Dizerem-me que estava a fazer tudo bem ajudou. Confiarem em mim ajudou. Tirarem-me o cabelo dos olhos ajudou. Estarem apenas concentrados em mim ajudou. O silêncio ajudou.
Talvez nunca tenha escrito sobre isto porque me sinto uma sortuda. E isso faz-me sentir um bocadinho envergonhada.
Cada mulher deveria ter a possibilidade de desenhar o seu parto de sonho. Porque isto é tudo natural mas individualmente é uma experiência única e avassaladora. Que deixa marcas para sempre.
Quando estava quase a terminar e à medida que a dor ficava mais forte começou a correr um filme na minha cabeça. Sentia uma ligação. Uma empatia gigante. Como se a dor estivesse a abrir um espaço dentro de mim - não só para a Eva mas para outras coisas emergirem. Talvez pareça estranho e confuso mas eu estava só a surfar uma onda - cada contração era uma possibilidade de encontro: comigo, com a Eva, com todas as mulheres que já pariram.
Naquele momento, estava tudo tão claro. Eu queria desistir mas não podia. Queria poder controlar qualquer coisa mas nada estava mais nas minhas mãos. A única coisa que era realmente importante era deixar-me atravessar pela experiência. Respirar. Gritar. Imaginar um mar que ia e vinha. Lembrar-me que a cada instante ficava mais próxima da minha filha.
Não posso dizer que tenha sido fácil porque não foi.
E não acho que as minhas circunstâncias pudessem ser as ideais para todas as mulheres. Mas foram as ideais para mim e por isso estarei sempre muito grata.
Há sempre um factor de risco, seja num parto domiciliar ou num parto hospitalar.
Gostava que a minha experiência pudesse servir outras mulheres de forma positiva porque um parto na água não tem de ser uma excepção ou coisa de freacks. No meu ponto de vista deveria ser apenas mais uma possibilidade.
No fim de contas acredito que todas escolhemos aquilo que nos faz sentir mais seguras.
Eu fiz uma escolha e fui respeitada.
Em qualquer situação, creio que isto é o mínimo que se pode dar ao outro.