the hands show the way of the heart

Sr. Pessoa

| On
January 21, 2010
A Inês, uma das minhas pessoas favoritas no mundo, amiga do coração, a quem admiro a força e a capacidade para me dizer frontalmente, por vezes duramente (como um carrasco) aquilo que preciso de ouvir, enviou-me um vídeo em que Maria Bethânia interpreta este poema de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa.

Alberto Caeiro é o amante da natureza, das coisas simples e belas da vida. De todos os heterónimos, este é o meu preferido... aquele que não tem medo de se entregar, que tem alma de criança e pureza de sentimentos.

"Num meio-dia de fim de Primavera | Tive um sonho como uma fotografia | Vi Jesus Cristo descer à terra | Veio pela encosta de um monte | Tornado outra vez menino | A correr e a rolar-se pela erva | E a arrancar flores para as deitar fora | E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu | Era nosso demais para fingir | De segunda pessoa da Trindade | No céu tudo era falso, tudo em desacordo | Com flores e árvores e pedras | No céu tinha que estar sempre sério | E de vez em quando de se tornar outra vez homem | E subir para a cruz, e estar sempre a morrer | Com uma coroa toda à roda de espinhos | E os pés espetados por um prego com cabeça | E até com um trapo à roda da cintura | Como os pretos nas ilustrações | Nem sequer o deixavam ter pai e mãe | Como as outras crianças | O seu pai era duas pessoas - Um velho chamado José, que era carpinteiro | E que não era pai dele | E o outro pai era uma pomba estúpida | A única pomba feia do mundo | Porque nem era do mundo nem era pomba | E a sua mãe não tinha amado antes de o ter | Não era mulher: era uma mala | Em que ele tinha vindo do céu | E queriam que ele, que só nascera da mãe | E que nunca tivera pai para amar com respeito | Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir | E o Espírito Santo andava a voar | Ele foi à caixa dos milagres e roubou três | Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido | Com o segundo criou-se eternamente humano e menino | Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz | E deixou-o pregado na cruz que há no céu | E serve de modelo às outras | Depois fugiu para o Sol | E desceu no primeiro raio que apanhou | Hoje vive na minha aldeia comigo | É uma criança bonita de riso e natural | Limpa o nariz ao braço direito | Chapinha nas poças de água | Colhe as flores e gosta delas e esquece-as | Atira pedras aos burros | Rouba a fruta dos pomares | E foge a chorar e a gritar dos cães | E, porque sabe que elas não gostam | E que toda a gente acha graça | Corre atrás das raparigas | Que vão em ranchos pelas estradas | Com as bilhas às cabeças | E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo | Ensinou-me a olhar para as coisas | Aponta-me todas as coisas que há nas flores | Mostra-me como as pedras são engraçadas | Quando a gente as tem na mão | E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus | Diz que ele é um velho estúpido e doente | Sempre a escarrar para o chão | E a dizer indecências | A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia | E o Espírito Santo coça-se com o bico | E empoleira-se nas cadeiras e suja-as | Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica | Diz-me que Deus não percebe nada | Das coisas que criou - "Se é que ele as criou, do que duvido." - "Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória. Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada. E por isso se chamam seres." | E depois, cansado de dizer mal de Deus | O Menino Jesus adormece nos meus braços | E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro | Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava | Ele é o humano que é natural | Ele é o divino que sorri e que brinca | E por isso é que eu sei com toda a certeza | Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina | É esta minha quotidiana vida de poeta | E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre | E que o meu mínimo olhar | Me enche de sensação | E o mais pequeno som, seja do que for | Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo | Dá-me uma mão a mim | E outra a tudo que existe | E assim vamos os três pelo caminho que houver | Saltando e cantando e rindo | E gozando o nosso segredo comum | Que é saber por toda a parte | Que não há mistério no mundo | E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre | A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado | O meu ouvido atento alegremente a todos os sons | São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro | Na companhia de tudo | Que nunca pensamos um no outro | Mas vivemos juntos e dois | Com um acordo íntimo | Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas | No degrau da porta de casa | Graves como convém a um deus e a um poeta | E como se cada pedra | Fosse todo o universo | E fosse por isso um grande perigo para ela | Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens | E ele sorri porque tudo é incrível | Ri dos reis e dos que não são reis | E tem pena de ouvir falar das guerras | E dos comércios, e dos navios | Que ficam fumo no ar dos altos mares | Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade | Que uma flor tem ao florescer | E que anda com a luz do Sol | A variar os montes e os vales | E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o | Levo-o ao colo para dentro de casa | E deito-o, despindo-o lentamente | E como seguindo um ritual muito limpo | E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma | E às vezes acorda de noite | E brinca com os meus sonhos | Vira uns de pernas para o ar | Põe uns em cima dos outros | E bate palmas sozinho | Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho | Seja eu a criança, o mais pequeno | Pega-me tu ao colo | E leva-me para dentro da tua casa | Despe o meu ser cansado e humano | E deita-me na tua cama | E conta-me histórias, caso eu acorde | Para eu tornar a adormecer | E dá-me sonhos teus para eu brincar | Até que nasça qualquer dia | Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus | Por que razão que se perceba | Não há-de ser ela mais verdadeira | Que tudo quanto os filósofos pensam | E tudo quanto as religiões ensinam?"

Alberto Caeiro

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