the hands show the way of the heart

# Dia 152

| On
October 25, 2010
{garganta apertada e coração esmagado}

"O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invísiveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antónimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar.
Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.

...

Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo o lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada do espelho.

...

Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até à escola. Até à porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até à porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.
Eliane viu Israel. E Israel se viu reflectido no olhar de Eliane.
E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresístivel imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago.
E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha-se transformado em israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Reflectido por esses olhos, Israel passou a refectir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.

..."

Assim começa o livro de crónicas de Eliane Brum que ando a ler: "A vida que ninguém vê".
Esta é a primeira história. A "História de um olhar". As que li depois são igualmente tocantes e admiravelmente bem escritas.

Histórias de gente. Histórias vividas e contadas com olhos, ouvidos e coração aberto.

Lá fora chove como se o mundo fosse acabar. Espero que não acabe já. Quero ler mais um bocadinho...
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